terça-feira, 18 de novembro de 2008

LUCY MEIA-CARA



Em meio a tantas atividades que vinha realizando, um convite mobilizou minha alma com especial tormento: fazer Lucy Meia-Cara em "Como Almodóvar", sob a direção de Gláucio Machado. Deixar de ser sua assistente e ser dirigida por ele? Desde o concurso para professor efetivo da Escola de Teatro, onde fui sorteada como atriz para sua prova prática, que desejei estar onde hoje estou, ser atriz em um espetáculo assinado por ele.

A pergunta que logo vai surgir é: então por que o tormento? Não queria deixar de ser assistente e fotógrafa da peça. Sou fã nº 1 de Como Almodóvar. Além disso Lucy é uma dessas personagens que por mais que a gente vasculhe, esmiuce, desenvolva, ainda restará um Hades para percorrer. Sua alma persefônica, cujos duplos se multiplicam e as polaridades possuem colaraturas altamente contrastantes, só vai se apresentando muito amiúde e tão timidamente quanto suas aparições primaveris. Do extremo amor à ira implacável, do floral primaveril ao sufocante enxonfre infernal. Meia-Cara. Meia de uma e Meia de outra. O inteiro não forma um contínuo. Bipolaridade? Dentro da minha ignorância e do meu conhecimento leigo poderia dizer que há uma possibilidade grande, mas não sou especialista para enveredar por essas paragens.

Costumo construir meus personagens como quem tece em telas camadas a partir de sensações, emoções e sinestesia. Mudo pincéis e às vezes nem os uso, trabalho com tintas de naturezas até mesmo antagônicas, mas sempre respeitando as camadas, que se sobrepõem, se ajustam se anulam e vão construindo alguém que não vejo como todo até que se apresente todo. Muitas vezes a vi de fora. Ela, Lucy, andava na minha frente, fumava, filmava, chorava e saía. Algumas vezes a vi por dentro a fazer as mesmas coisas, mas só ficava dentro, não se expandia em direção às musculaturas, peles e voz. Um dia ouvi sua voz, seu ritmo. Mas também se foi.

Não há nada de espiritual, ou extra qualquer coisa neste processo. É a imaginação, imagens em ação, pensamentos em rotação, associações, dissociações. Ações.

No mais, as técnicas em movimento, ajustes técnicos, descobertas... Um dia um movimento de toureiro surgiu (a gente sempre usa os conhecimentos adquiridos durante a vida), afinal Almodóvar é espanhol, tenho ascendência espanhola e estudei a cultura espanhola no Instituto de Letras da UFBA. Pois é. Daí o padrão corporal de Lucy foi construído a partir do estudo dos movimentos dos toureiros, sim toureiros, da movimentação dos homens toreadores e que possibilitou a masculinização dos movimentos de Meia-Cara.

Ela é uma apresentadora de um programa sensacionalista. Pertence ao universo da TV, universo onde as aparências são mais importantes, o que se mostra e como se mostra é mais importante do que o que se é. A verdade é algo tão palpável quanto o mercúrio. E não importa o preço que vai se pagar pra se fazer o programa, o furo de reportagem deve ser caçado. Então Lucy é uma caçadora de furos. Sua arma: a filmadora que não sai da mão, aliás é a extensão de sua mão, de sua visão, de suas perspectivas.

Se fosse psicologizar Lucy sofreria de sérias dores musculares, mas no melodrama, na curva almodoviglauciana não há espaço para dores de intérpretes, afinal a viceralidade pertence ao universo dos personagens e a lógica e técnica ao dos atores.

Entendo Lucy, não sou do seu mundo, nem concordo com ele, mas aprendi com o Mestre Harildo a não julgar minhas personagens. Recebê-las e ser verdadeira, inteira, sem medo dos caminhos que terei de trilhar.

Desejo que Lucy encontre novas formas de amar. Que se deixe ver e veja com todos os olhos. Ela é bela, só não sabe o quanto é e como expressar.

Viver em certos "mundos", cercados de "certas pessoas" não facilita o exercício de ser quem se é. Ao contrário, nos distanciamos, distorcemos nossa auto-imagem e cosntruímos um cartão de visitas que nos aprisiona e nos reduz.

Desafio! Só Gláucio pra fazer isso! Entrar no labirinto dos desejos, descobrir a flor do segredo, falar com ela, descobrir maus hábitos, andar de salto alto, atar-me, ficar à beira de um ataque de nervos, quase ser um matador, agradecer a Kika por ter feito algo para merecer isso e tudo por culpa da minha mãe, enfim...

Coroando tudo isso, pisar no palco do reformado Martim Gonçalves depois de tanto tempo. Adoro mudanças, mas sou saudosista e sinto falta de algumas coisas do Sto Antônio.

Lucy Meia-Cara, espero que possa ganhar sua confiança e venhamos a conversar mais profundamente sobre nossos universos.

Como Almodóvar está no Teatro Martim Gonçalves (Escola de Teatro da UFBA), Canela.

5a a domingo às 20h.

Apareçam e confiram o mergulho na obra de Almodóvar que gerou o texto escrito por Cláudia Barral, dirigido por Gláucio Machado.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

RETORNO

Fiquei muito tempo sem escrever. Na verdade a vontade vinha, entretanto a energia estava canalizada para "Avental Todo Sujo de Ovo". Foram muitos percursos, tantos caminhos que precisei focar, direcionar meu olhar para aquele fruto que amadurecia. Cuidar do blog do Avental, da divulgação, da produção, ser atriz... Sei e gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, em paralelo, mas dessa vez não pude.

A partir de agora começarei a postar sobre assuntos que estão acupando minha mente, atiçando minha curiosidade e mexendo comigo.

Por hora, fica uma pergunta no ar: Por que as pessoas evitam, se afastam de relações e coisas que as provocam emocionalmente, mas quando inevitavelmente entram em contato com essas relações ou coisas sentem-se plenas e satisfeitas? Porque alguns espetáculos maravilhosos, tecnicamente bem resolvidos, inteligentes e plenos de sentidos são preteridos, mal nascem já morrem e outros cuja qualidade técnica é inferior, pobre de significações e invariavelmente preconceituosos são altamente procurados, assistidos e reassistidos e duram tempos e tempos?

Estamos tão acostumados à falta de luz que rejeitamos a iluminação por agredir nossos frágeis olhos?

Nos alimentamos ultimamente pelas bordas, muitas vezes com medo de atingir o centro do prato e sermos surpreendidos com novos sabores. Vivemos das sobras que nos permitem nossos medos e inseguranças, deixando de viver a pulsação de sentir-se vivo.

Tudo está interligado. Arte, maneira de viver, pensar, sentir, ver! Rasguemo-nos! E que surjam das entranhas sombrias nossa mais brilhante luz!